Quem já não ouviu: escutar é diferente de ouvir?
Tenho a nítida impressão às vezes que as pessoas escutam por educação, mas não ouvem porque não possuem limiar de atenção suficiente. Eu não julgo se meus interlocutores estão interessados ou não, porque considero o interesse uma experiência pessoal e intransferível; porém, interpreto que as pessoas estão "congestionadas"assim como as linhas telefônicas quando dá linha cruzada. Fisicamente as pessoas estão ali, te olhando e você falando, mas elas não estão só te ouvindo, existem outras vozes vindas de fontes invisíveis a você interferindo na linha. No final da sua fala, a pessoa te olha e num gesto quase de clemência sussurra: "Desculpe, mas não entendi a sua colocação." Ou, "Pode repetir por favor?" ou "Como assim? Não entendi!" e por aí vai. Os piores interlocutores porém, são aqueles que fingem que escutaram e te oferecem pérolas de resolução, opiniões divergentes ou começam a gritar, falar alto sobre qualquer outro assunto para chamar a atenção dos demais sobre si mesmo. À estes, eu chamo de autoritários, e é sobre essa "roupa suja" do autoritarismo que gostaria de escrever hoje, com particular foco à educação das nossas crianças e jovens.
Em o
Mito Fundador e Sociedade Autoritária, Marilena Chauí, afirma que a sociedade brasileira é uma sociedade autoritária. Na minha interpretação deste estudo, somos assim porque somos frutos de uma história que nos educou dentro deste comportamento. Nosso aprendizado foi tão efetivo que não somos autoritários apenas em específicos patamares, mas fazemos questão de mostrar que somos bons alunos aplicando este comportamento às nossas relações pessoais. Este autoritarismo estendido configura-se muitas vezes como abuso de poder onde existe a dominação de uma pessoa sobre outra através do poder financeiro, econômico ou pelo terror e coação. Diferindo-se portanto, do termo "autoridade" que entendemos como simples fonte de poder: a base de quaisquer organizações hierárquicas definindo as lideranças.
O que consideramos abuso? O termo ou idéia de abuso aplica-se a qualquer ação humana onde exista
uma pré-condição de desnível de poder, seja ele sobre objetos, seres,
legislações, crenças ou valores. Sabemos pois, que fontes de poder perdem a autoridade quando adotam o autoritarismo e subordinam outrem não pelas idéias, mas pela força, seja a do grito, seja a da violência física. O desnível de poder quando estabelecido, substitui o respeito pelo medo. Porém, o que fazer quando os subordinados perdem o medo e reagem da mesma forma violenta? O caos está por sua vez instaurado e tudo parece fora de controle aos olhos das autoridades.
Quanto mais leio sobre a violência nas escolas e a desmedida crueldade de crimes praticados por jovens que deveriam estar estudando, mais questiono sobre a nossa educação autoritária onde medimos força o tempo todo. Será que ainda funciona dizer: quem manda aqui sou eu?
Há alguns anos atrás assisti a um filme chamado 1968 que se tratava de uma história de um grupo de jovens franceses que adotam a filosofia hippie. Durante a revolta estudantil de maio daquele ano, a mais rica deles compra uma fazenda antiga e ali todos juntos constroem a comunidade de seus sonhos. Eles criam seus filhos para serem livres pensadores, críticos, criativos, independentes. Os filhos crescem e alguns pais voltam para Paris, retomam seus estudos e profissões e constituem uma família dentro dos padrões da sociedade parisiense. Os filhos, então já adolescentes começam a exercer sua liberdade, falando o que pensam e tomando suas próprias decisões. Para surpresa geral do público, os pais se irritam com tamanha "liberdade" e começam a ter problemas na criação de seus filhos, frutos de seus valores anteriores de amor, paz e liberdade. O conflito toma diferentes proporções nos diferentes grupos. A comunidade criada por estas pessoas continuou de pé devido a líder que lá permaneceu, teve filhos e netos. Todos eles, diferente dos seus amigos que voltaram para a cidade, tomaram diferentes rumos sem que a matriarca interferisse nas escolhas dos caminhos a serem seguidos. O final do filme é uma reunião dos principais personagens em torno da matriarca. Ela, em seu papel central, ouve atentamente as experiências de seus amigos e comenta particularmente aquelas em que alguns se manifestavam descontentes com seus descendentes. Ao final da fala de um deles, ela calmamente segura sua mão e diz: "Lutamos por esta liberdade, nossos filhos e netos não se amedrontam mais diante de ameaças e manifestações de poder. Se você quer ser ouvido, respeitado, ouça até o fim para suas estratégias ajudem e não tolham a liberdade de escolha. Exerça sua autoridade com sabedoria. Lembre-se, nós lutamos por isso. Vencemos, mas vejo que vocês não sabem como ser diferente de seus pais. Ser como eles não funciona mais! Nós quebramos o padrão!Nossos filhos e netos demonstram que vencemos!"
Quando se quebra o padrão, há que se redefinir a estratégia. A velha fórmula já não funciona mais.
Percebo através do que leio seja nos jornais, seja na internet que existem buracos enormes nesta contenção da violência nas escolas. Um dos buracos que atinge diretamente os professores é o fato de que receberam um preparo filosófico da educação para a liberdade, mas têm que ensinar àqueles que são os frutos de uma sociedade autoritária, em um sistema autoritário, sob ordens de pessoas autoritárias. A relação professor-aluno perdeu o encanto desde que nem um nem outro são respeitados em sua essência humana para começar e acima de tudo não têm conhecimento de seu papel na sociedade. O professor não conhece o aluno e o aluno desconhece o que significa ser professor. Um fala, o outro finge ouvir. A decadência desta relação gera frustração e esta desencadeia a agressividade, o desinteresse, e no final tudo isso provoca nos dois personagens desta história, ações de violência e terror nunca vistas antes.
A partir do momento em que recebemos overdoses de abuso de poder por aqueles que deveriam ser respeitados pela autoridade conferida, a admiração e respeito sofrem um ataque viral de banalização dos papéis que cada um exerce na sociedade. Professores são vistos como os grande vilões e entraves ao progresso de nossas crianças, assim como, sob o ponto de vista dos alunos se tornam os babacas que tentam ficar dando sermão ou derramam um monte de baboseiras sem uso. Claro que tudo depende do valor que cada um dá à educação. Portanto, os primeiros valores vêm de berço, não do banco da escola. Portanto, o desrespeito ao professor tem sua origem muito antes destes dois personagens se encontrarem.
Se valorizamos a educação para a liberdade, devemos agir com responsabilidade, reconhecendo e exercendo o papel que escolhemos nesta sociedade. Se condenamos o autoritarismos, não podemos ser autoritários. O respeito está para ser ensinado e esta geração está gritando por socorro. Não adianta mais perguntar quem manda aqui, se vivemos numa sociedade onde todos mandam. O segredo está em ouvir porque normalmente quem age autoritariamente não tem tempo para ouvir!
Descongestione a linha, ouça. Aja com um professor: colha informações e escolha a melhor estratégia de aproximação para adquirir o respeito e a admiração de seus alunos.