Dá pra lavar a janela?
Certa vez ouvi uma história (infelizmente não sei quem é o autor) que era mais ou menos assim:
Um casal, recém-casados, mudou-se para um bairro muito tranqüilo. Na primeira manhã que passavam na casa, enquanto tomavam café, a mulher reparou em uma vizinha que pendurava lençóis no varal e comentou com o marido:
Que lençóis sujos ela está pendurando no varal! Está precisando de um sabão novo. Se eu tivesse intimidade perguntaria se ela quer que eu a ensine a lavar as roupas!
O marido observou calado.
Três dias depois, também durante o café da manhã, a vizinha pendurava lençóis no varal e novamente a mulher comentou com o marido:
Nossa vizinha continua pendurando os lençóis sujos! Se eu tivesse intimidade perguntaria se ela quer que eu a ensine a lavar as roupas!
E assim, a cada três dias, a mulher repetia seu discurso, enquanto a vizinha pendurava suas roupas no varal. Passado um mês a mulher se surpreendeu ao ver os lençóis muito brancos sendo estendidos, e empolgada foi dizer ao marido:
Veja, ela aprendeu a lavar as roupas, será que a outra vizinha a deu sabão? Porque eu não fiz nada.
O marido calmamente a respondeu:
Não, hoje eu levantei mais cedo e lavei a vidraça da janela!
E assim é. Tudo depende da janela, através da qual observamos os fatos. Antes de criticar, verifique se você fez alguma coisa para contribuir; verifique seus próprios defeitos e limitações. Devemos olhar, antes de tudo, para nossa própria casa, para dentro de nós mesmos.
Lave sua vidraça!
Abra sua janela!
O que acontece porém, quando limpamos a janela e tudo o que vemos lá fora é tão desagradável que nos obriga a fechar a cortina? Quando descemos a persiana, puxamos o blind e fechamos a cortina, passamos a não ter direito à luz natural - ao sol para iluminar e aquecer os cômodos, não poderemos mais admirar a chuva ou acenar para os nossos vizinhos e muito menos poderemos sentir o vento que refresca a vida.
Depende da perspectiva, não é? Alguém que queira te confortar pela sua falta de liberdade de abrir suas cortinas e janelas responderia: olha, você pode ver pelo lado de que fechando as cortinas você se sentirá mais seguro, ninguém irá bisbilhotar o que você tem em casa, você não será obrigado a acenar para aquele vizinho chato e o melhor de tudo é que ninguém saberá quando você está em casa, daí você poderá decidir se atende ou não quem bater na porta. Ta vendo? Não é tão mal assim viver enclausurado na sua negação de ver o mundo tal como ele é. Mas eu penso: isso é perigoso!
O fato é que a decisão de blindar a visão daquilo que nos é desagradável aos olhos, cria uma prisão na ignorância e o falso conforto de uma segurança que te omite na multidão. O fato é que não somos invisíveis e nunca conseguiremos sê-lo, pois somos massa e ocupamos lugar no espaço: somos matéria e portanto, agentes modificadores do ambiente, simplesmente por existirmos. "Se pensamos, existimos!" Ditou Descartes. Por esta razão, devemos exercer a atividade de livres pensadores, interlocutores e verbalizar o que vemos para que tudo não passe de uma ilusão de ótica. E, isso é contribuir de janela aberta para que a paisagem mude, para que nossa ação no mundo seja efetiva.
Todos os dias, passo pelo Viaduto da 14 bis em São Paulo e à cada dia conto um morador de rua a mais, o que sempre me entristece muito. Hoje, porém, a cena me fez chorar de volta para casa: um grupo meninos, em que a media da faixa etária não deve passar de dez anos de idade. Eles se revezavam entre dividir seu cachimbo de crack e correr entre os carros pedindo dinheiro. Os motoristas mantinham suas janelas fechadas e os políciais do outro lado da rua olhavam para dentro de seu trailler como se não quisessem ver aquilo que eles não podem resolver. Eu já tinha visto esta cena antes, mas hoje acho que minhas lentes estavam mais limpas, capturando um filme sem expectadores.
Milhares de pensamentos passaram pela minha cabeça e fiquei muito atormentada ao entender que nenhuma ação social será eficiente se não vier daqueles que querem ver o problema de fato. O cartão chamado "Recomeçar" criado para atender os usuários do crack é só mais uma muleta que vai quebrar já já...
Enxergar o problema do menor infrator e do usuário de drogas não são assuntos diferentes, eles vêm juntos numa situação complexa social de descaso com a educação pública neste país, com a educação para a saúde e com a educação dos líderes políticos. Quanto mais ignorante o político responsável pelas ações sociais, mais elas serão ineficientes e cada vez mais agravarão o problema.
Diminuir a idade do jovem infrator para cumprir pena legal somente contribuirá para que as quadrilhas aliciem crianças cada vez mais novas. Levar o dependente de crack para um lugar bucólico, sem tratamento psiquiatrico e terapêutico é contribuir para que retorno ao "mundo-real-que-não-oferece-oportunidade-a-quem-não-é-qualificado-e-ex-drogado" seja mais traumático e solitário. Tirar estas pessoas das nossas vistas e enclausurá-las sem o mínimo apoio educacional, para enfrentar esta vida que não é fácil, é como fechar a cortina. E daí minha indignação ao ver a propaganda comandada por celebridades arrecadando fundos para ajudar crianças na África, Haiti, e outros lugares miseráveis, enquanto a nossa roupa continua suja, naquele cesto jogado nos fundos da lavanderia. Outra coisa que me causa a mais profunda irritação é este Estado autoritário com cara democrática que não permite e por isso não proporciona discussões para criar soluções efetivas e duradouras. As ações sociais implementadas neste autoritarismo estão mantendo a janela suja e estão manipulando o olhar da sociedade através de um prisma que julga e não ajuda.
Dá para limpar a janela?
Até a próxima roupa suja...
Nenhum comentário:
Postar um comentário